Às vezes, ele surge quando é difícil escutá-lo e chegamos até a recusá-lo.
Jonas é aquele que começa dizendo não à sua voz interior: “Para vivermos felizes, vamos nos esconder, vamos nos deitar.” É aquela pessoa que se recusa a escutar a voz que convoca: “Levante-se!”
Lembram-se da história de Jonas? Certa noite ele foi atravessado por uma presença que o convidou a levantar-se e partir para Nínive, a grande cidade, inimiga do povo de Israel. Ele foi convocado a seguir na direção dos seus inimigos. Em vez de ir para Nínive, Jonas se dirige a Társis, na Sardenha, ao Norte da Espanha, onde há espaço para o lazer, para o esquecimento.
Os medos de Jonas: a fuga do Ser
Jonas foge da sua palavra interior. Entra num barco que está partindo para Társis e dorme no porão. O problema é que uma tempestade se precipitai enquanto ele dorme, as ondas se levantam. Este é o primeiro ensinamento do livro de Jonas: o fato de não nos tornarmos nós mesmos pode ter consequências não só em nosso interior, mas também em torno de nós. Precisamos lembrar que o maior serviço que podemos prestar aos outros é nos tornarmos nós mesmos. Se não fizermos isso, haverá tempestades e distúrbios à nossa volta.
A continuação da história vocês já conhecem. Os marinheiros dentro do barco se perguntam: “Por que esta tempestade? Por que esta ameaça?” Depois de consultarem as cartas e interrogarem os deuses, concluem que o motivo é Jonas.
Quem não escuta sua voz interior pode causar distúrbios nos que estão ao redor. Então Jonas se defronta com sua responsabilidade: reconhece ser a causa de tanto transtorno e mergulha no oceano. Simbolicamente, mergulha no seu inconsciente e cessa de fugir. Entra num processo de conhecer a si mesmo, suas sombras e seus medos. Isso é simbolizado pelos três dias que ele passa no ventre da baleia - uma descida às profundezas de si mesmo.
É no coração dessa profundidade que Jonas vai gritar e apelar para Deus. Só quando vai além dos próprios limites é que ele reencontra o Ser que o faz ser e aceita a sua missão. Depois que a baleia o expulsar pelo vômito, ele cumprirá a sua missão. Jonas pregará na grande cidade, dirá que, se os habitantes continuarem a viver do mesmo modo, serão todos destruídos.
O medo de amar
A voz do profeta é aquela que adverte. Jonas anuncia a justiça, a lei do carma: “Todas as causas provocam efeitos; se continuarmos com essa atitude de violência e de desprezo, isso acarretará a destruição da grande cidade.” Para sua surpresa, o povo de Nínive escuta sua voz e retoma à sua verdadeira natureza. E a cidade não é destruída.
Mas algo curioso ocorre: Jonas, que deveria ter ficado feliz, fica triste e muito bravo com Deus. Diz então ao seu Deus: “Eu bem sabia que você era um ser de ternura e de perdão, mas não que era injusto. O normal é que esta cidade seja destruída como consequência natural de seus atos.” Desse dia em diante, Jonas trabalha muito para aceitar esta dimensão da misericórdia do ser que não revoga a justiça e a lei do carma, mas transcende-as.
O livro de Jonas é muito interessante para a nossa abordagem porque o medo que Jonas sente e as razões de sua fuga fazem parte de nós. Jonas está em cada um de nós. Quando recebemos o convite para nos levantar, para despertar do nosso sono, alguma coisa dentro de nós ainda resiste. E a essa força que resiste é que chamamos normose. Do que Jonas tem medo?
O medo do sucesso
Já evocamos o medo de fazer sucesso, de realizar o que nossos pais não conseguiram. Isso é, efetivamente, algo que pode estagnar o nosso vir a ser. Por exemplo, ser feliz na vida afetiva quando nossos pais se divorciaram, ou algo muito difícil como vencer profissional e financeiramente podem se transformar numa fonte de inquietude.
Freud dizia que o medo de superar os pais na felicidade, na educação e na riqueza pode repercutir como uma ameaça de se perder o amor deles; corre-se o risco de ser rejeitado por eles. É claro que tudo isso transcorre no nível do inconsciente, porque os pais sempre desejam que seus filhos sejam melhores do que eles foram. Essa é a mensagem consciente. Entretanto, inconscientemente, às vezes ocorre um ciúme secreto que a criança pode captar, sentir. Então o desejo de vencer torna-se um sonho virtual inofensivo. Mas, se esse sonho se realiza, pode se tornar um verdadeiro problema.
Freud costumava citar o exemplo de um de seus professores na universidade. Este queria tanto o lugar do chefe que, quando conseguiu o cargo, ficou doente. Essa é uma observação que podemos fazer. Entretanto, creio que ainda não é bem aí que se situa o complexo de Jonas, ele é mais central. Há algo mais profundo que é o medo do ostracismo, ao qual já nos referimos.
Para Jonas, ir a Nínive significa, de certo modo, ir na direção dos inimigos de Israel e, assim, trair seus próprios irmãos - o que é inaceitável. Ele prefere não cumprir a missão para não ser considerado traidor.
Às vezes isso nos acontece quando fazemos parte de um certo meio, de uma família, de um partido. Se buscarmos outros partidos ou outros meios, isso pode ser visto como traição. Então, surge o medo de ser expulso do meio ambiente - medo que gera o medo de ser diferente e de ser rejeitado em razão dessa diferença.
O medo do exílio
Citando Rollo May: “Muitos fatores provam que a maior ameaça, a maior evidência da angústia do homem ocidental não é a castração, mas o ostracismo.” Ou seja, sentir-se rejeitado pelo grupo. Muitos contemporâneos nossos sofrem uma castração voluntária, renunciando à própria originalidade, ao próprio poder, à própria independência por medo da exclusão. Eles adotam a impotência e o conformismo sob a ameaça eficaz do ostracismo.
Muitos psicólogos da corrente humanista mostrarão o poder desse conformismo que engendra uma aparente segurança. É uma falsa segurança, que consiste em sentir-se normal, como todo o mundo, enquanto a única segurança possível é aquela que decorre do fato de você tornar-se um consigo mesmo, com seus desejos mais íntimos. Se renunciarmos a isso, surgirá dentro de nós uma fonte de distúrbios e de doenças. E, como diz o livro de Jonas, não só para nós, mas também para os outros. A saída do conformismo e da segurança se alia ao medo da mudança. Ficamos encerrados no conhecido por medo do desconhecido.
O medo do saber
Krishnamurti escreveu um belo livro no qual afirma que a liberação do conhecido demanda muita coragem e maturidade. O medo de não ser como os outros desencadeia o medo de conhecer a si mesmo. Jonas tem medo de ser diferente porque essa diferença é o que ele realmente é. É isso que se tem de escutar. Quanto mais impessoal o conhecimento, mais seguro ele será; quanto mais pessoal ele se tornar, na escuta do próprio mundo interior, mais nos questionaremos a esse respeito.
É importante lembrar que o transpessoal não é o impessoal. É a passagem, a abertura do pessoal ao que o ultrapassa, sem destruir a pessoa, abrindo-a para outra dimensão. Essa outra dimensão, é com a nossa forma própria que precisamos apreendê-la.
O medo da autenticidade
Ao medo de ser o que somos damos o nome de medo da autenticidade. Cada um de nós tem uma missão a cumprir, algo a encarnar. Esta é a pergunta de Jonas: “O que tenho a fazer na vida que ninguém pode fazer por mim?” E é, também, uma boa pergunta para cada um de nós: “O que tenho a fazer que ninguém pode fazer por mim? Qual é a forma exclusiva, única, através da qual o Logos, a Inteligência Criativa, se encarna em mim? Qual é a minha forma própria de ser inteligente? Qual é a minha forma particular de amar, encarnar e manifestar o amor no mundo”
Uma inteligência diferencia-se da outra. A maneira de amar de um não é a mesma do outro. O amor é único e a inteligência criativa é una, mas assumem formas diferentes e particulares em cada um de nós. É assim como a água que cai no canteiro. A mesma água faz com que as flores se abram em diferentes cores. Uma vermelha, outra branca, outra laranja. É a mesma vida em todas, mas cada uma tem uma cor para manifestá-la e encarná-la. Uma maneira única de manifestar a vida. E é disto que Jonas quer fugir: do que a vida e Deus pedem a ele. Ele foge do que poderá conduzi-lo a si mesmo.
A cidadela do outro
Jonas pode fugir na direção de Társis e esquecer essa voz interior. Nesse caso, ele não se tornará verdadeiramente Jonas. Ele apenas se tornará Jonas se for na direção de si mesmo, ousando dirigir-se para Nínive, ou seja, em direção ao outro. Porque é na relação com o outro que nós nos tornamos quem somos.
É o fato de ter uma tarefa a cumprir que torna cada um de nós insubstituível, dando um sentido à nossa existência. Essa não é uma tarefa reservada apenas aos grandes sábios e profetas, mas é o que cada ser humano pode realizar em sua existência. Só nos tornamos realmente quem somos se formos na direção do outro.
Não fugir do próprio desenvolvimento e não cair no conformismo patológico - o que chamamos de normose - é resultado de um processo, de uma escolha cotidiana. O fato de ir além de si mesmo, ir além das próprias possibilidades, não é para se perder, mas para se encontrar. É entrar em contato com o ser humano nobre, com o ser humano sagrado, com a dimensão espiritual em cada um de nós.
O medo da vastidão
O medo de Jonas é o medo de ser, o medo do Self. Por que tememos esse eu interior? Porque para se entrar em contato com essa dimensão de nobreza, com a dimensão do sagrado em cada um de nós, há uma exigência - uma exigência de viver de um modo mais nobre, mais elevado.
Abraham Maslow fala do complexo de Jonas como sendo o medo que temos da nossa própria grandeza - o medo do Self. Se conseguirmos atravessar esse medo, se confiarmos nessa energia que revela em nós o desejo de realização e de plenitude, então nossa missão se cumprirá. Isso será útil para nosso bem-estar e também para o bem-estar de todos.
Resta, ainda, uma pequena dificuldade a ser vencida: Qual é a imagem que postulamos do Self? Que imagem temos do Absoluto que nos habita? Para Jonas, é a imagem da justiça, um Deus da verdade. Para ele, justiça e verdade implicam em que cada um pague pela consequência de seus atos. Aquilo que você planta, você colhe; se você semeia violência, colherá violência! Para ele, Deus é essa justiça, essa lei do carma.
O medo do Self
Jonas descobre que existe algo mais profundo que a justiça e fica perturbado, amedrontado. Ele tem medo de ser Deus, de ser capaz de perdoar, de sentir misericórdia. Às vezes experimentamos isso na vida. Alguma coisa em nós não quer perdoar. Afirmamos: “Isso não é possível, é inaceitável!” É inaceitável para o meu eu, para o ego.
Acontece que não é o ego que perdoa, mas o Self. Assim, tornar-se Deus não é tornar-se um ser fantástico e extraordinário; mas passar a ser capaz de ter paciência infinita, seja por nós mesmos, seja pelas pessoas. É, sobretudo, transformar em nós esse desejo de destruir, de retaliar, para a reconstrução da humanidade. o desejo da vida
Jonas vive uma experiência surpreendente. Quando está colérico, num estado de recusa da ternura e da misericórdia de Deus, deseja morrer. Então, cresce uma árvore que se levanta acima de sua cabeça, e, à sombra dela, ele entra num estado de repouso e felicidade.
Durante a noite, um verme destrói a árvore, expondo Jonas à violência do sol no decorrer do dia. Cheio de raiva, ele indaga: “Por que retirou a minha sombra? Prefiro morrer a viver assim!” Então, a voz interior, a voz de Deus, diz a ele: “Você fica com raiva e lastima a destruição dessa árvore que não lhe custou nenhum trabalho, que você não ajudou a crescer, que em uma noite existiu e em uma noite pereceu. E eu não terei pena de Nínive, a grande cidade, onde há mais de cento e vinte mil homens que não distinguem entre a mão direita e a esquerda, como muitos animais?!”
Essa voz nos lembra que, no fundo do ser, há o desejo da Vida. Seja qual for o comportamento de uma cultura ou de uma civilização, não é de se esperar, simplesmente, um profeta da infelicidade. Jonas quer ser um profeta da infelicidade, mas outra coisa lhe é pedida: ser capaz de perdoar. Não se trata de negar a justiça, mas de saber que talvez não seja ela, e sim a misericórdia, que dará a última palavra.
O livro de Jonas não diz se o profeta aceitou o desafio. Ele fica pelo caminho, assim como nós. Cada vez que superamos um medo, uma imagem de nós mesmos, uma imagem de Deus, uma representação do Absoluto, há sempre algo desconhecido a ser descoberto.
Um passo a mais!
Normose significa estar estagnado, retido, seja numa imagem, seja num sintoma. A tarefa, então, consiste em dar um passo a mais. Recordo a minha definição de espiritualidade, que é a mesma mensagem do peregrino de Compostela: dar um passo a mais.
A vida espiritual nem sempre consiste em ter grandes ideias e maravilhosos projetos, e sim em dar um passo a mais a partir do ponto em que nos encontramos. Não temos que nos comparar com ninguém. Para atingir o alvo, cada um precisa percorrer um caminho longo e único. O importante é dar um passo a mais. O ponto em que paramos é o começo do caminho que segue. É esse passo a mais que resgata o desejo e a vontade da vida, que vem vindo ao nosso encontro.
Temos de escolher entre uma vida perdida e uma vida escolhida e doada. Através do dom de nós mesmos, descobrimos aquilo que nunca vai morrer em nós. Pois a única coisa que nada nem ninguém pode nos tirar é aquilo que já doamos.
O dom, assim como a missão, é diferente para cada ser humano. A travessia da normose também será diversa para cada um. Jonas, ao atravessar seus medos, nos convida a dar mais um passo. É esse passo a mais que podemos, agora, desejar uns aos outros.
Trecho do Capítulo 2 “O Universo da Normose” – Livro A Normose – Jean-Yves Leloup