Se pudermos considerar o inteiro processo do apego, não superficialmente apenas, mas compreendendo o seu verdadeiro significado, penetrando-o até o fundo, então é bem possível que se apresente algo muito diferente daquilo que chamamos "desapego".
Porque somos tão apegados a alguma coisa: nossas posses, pessoas, ideias, crenças? Vocês bem sabem quantas formas de apego existem e a quantas coisas vivemos apegados. Por que somos tão apegados? Não há um sentimento de temor se não estamos apegados a alguma coisa? Se não estou apegado a meu amigo, a uma ideia, uma experiência já acabada, um filho, irmão, mãe, uma esposa morta?
Não nos consideramos desleais, desamorosos, se não somos apegados? E não há também, em nosso apego, um medo estranho de não sermos alguma coisa? O problema é este, e não como cultivar o desapego. Se cultivo o desapego, este próprio cultivo se torna um problema.
Vejam, por favor: eu sou apegado; meu apego é resultado de temor, de variadas formas de solidão, de vazio etc. Estou consciente disso e conheço as dificuldades que o apego me impõe; consequentemente procuro cultivar o desapego. E assim a minha mente se mantém ocupada com o desapego e sobre como alcançar tal estado; e esse processo mesmo se torna um problema, não é verdade?
Desejo conquistar o desapego e, assim, a mente, ocupando-me com o resultado, com uma ideia chamada "desapego", crio o problema da obtenção do "desapego"; nasce então o conflito - sou apegado e devo ser desapegado -, e esse conflito gera sofrimento. E vem daí uma luta constante para se alcançar certo estado isento de sofrimento e de temores.
Mas, se sou capaz de encarar o apego, estar consciente dele, sem perguntar como libertar-me da penosa luta para compreender tudo o que o apego implica, se sou capaz de estar simplesmente consciente dele, como se está consciente do céu - vendo-o nublado ou escuro, carregado de chuva ou todo azul -, não há então problema algum e a mente não está mais ocupada com a questão do apego ou com seu oposto, o desapego.
Quando a mente está assim vigilante, consciente, pode então perceber o inteiro significado do apego. Mas não se pode discernir todo o significado interior do apego se há qualquer forma de condenação, comparação, julgamento, avaliação. Se "experimentarem" o que estou dizendo, verão claramente o seu significado. O mero cultivar do desapego torna-se uma coisa por demais superficial. Suponhamos que fiquem desapegados - e então?
Mas, quando existe entendimento, pode-se ver que onde há apego não há amor; onde há apego, há desejo de permanência, de segurança, de continuidade pessoal - o que não significa que devamos aspirar à autodestruição. E, percebendo-se isso, o problema do apego se torna extraordinariamente significativo e amplo.
Se nos limitamos a fugir do apego, por causar-nos tanto sofrimento, essa fuga só pode levar-nos a um amor superficial, um pensar superficial. E a maioria dos que estão praticando a virtude - a virtude do desapego, da não avidez, da não violência - levam na realidade uma vida superficial, uma vida de ideias, de palavras.
Se estamos bem conscientes do problema do apego, em todos os seus aspectos, começaremos a descobrir as suas extraordinárias profundezas, o quanto a mente está apegada à experiência de ontem, com a dor ou o prazer que a acompanharam, o quanto está presa a essa experiência. Não será possível ficarmos livres da experiência, tanto de prazer como de dor, enquanto não estivermos verdadeiramente vigilantes.
Nessa vigilância ou percebimento, em que não há escolha nem reação alguma, a mente pode descer a grandes profundidades. A mera prática de qualquer virtude só pode conduzir à respeitabilidade, que é o que a maioria das pessoas deseja, pois a respeitabilidade identifica-nos com a sociedade. Todos desejamos ser reconhecidos como "algo", grande ou pequeno, isto ou aquilo; e a esta ideia temos apego.
Podemos desejar desapegar-nos de pessoas, porque tal apego nos causa dor, ao passo que a ideia a que estamos apegados não nos é dolorosa. Mas, para compreendermos verdadeiramente o problema do apego - apego à tradição, à nacionalidade, aos costumes, ao hábito, ao conhecimento, à opinião, a um salvador, a toda sorte de crenças e não crenças -, não devemos contentar-nos com arranhar a superfície, nem pensar termos compreendido o problema do apego pelo fato de estarmos cultivando o desapego.
Mas se, ao contrário, não procurarmos cultivar o desapego - cultivo que apenas se torna mais um problema -, se pudermos simplesmente observar, com toda a clareza, o apego, seremos então, talvez, capazes de descer a uma grande profundidade e descobrir algo completamente diferente, algo que não é apego nem desapego.
Livro “Transformação Fundamental” – Jiddu Krishnamurti