Domingo, 28 Mai 2023

O Que Somos Nós?

Escrito por G. I. Gurdjieff
  • tamanho da fonte diminuir o tamanho da fonte aumentar o tamanho da fonte
  • Imprimir
Avalie este item
(4 votos)
(Tempo Estimado de Leitura: 6 - 11 minutos)

Ao falarmos sobre assuntos variados, podemos perceber como é difícil transmitir nossa visão sobre eles, mesmo que o tema seja o mais banal e que conheçamos bem nosso interlocutor.

Nossa língua é pobre demais para fazermos descrições completas e exatas. Essa lacuna de compreensão entre uma pessoa e outra é um fenômeno organizado matematicamente, tão preciso quanto uma tabela de multiplicação. De modo geral, depende da chamada “psique” das pessoas envolvidas e, em particular, do estado de suas psiques em um determinado momento.

A veracidade dessa lei pode ser confirmada a cada passo. A fim de sermos compreendidos por outra pessoa, não basta ao locutor saber falar: o ouvinte precisa saber ouvir. Primeiro, precisamos determinar a possibilidade de uma compreensão comum. Com esse intuito, temos de olhar para as coisas, especialmente para nós mesmos, segundo um ponto de vista, um ângulo, o qual pode ser diferente do costumeiro ou natural para nós. Apenas olhar - fazer mais só é possível com a vontade e a cooperação do ouvinte e somente quando ele deixa de ser passivo e começa a ouvir em um estado ativo.

Volta e meia, ao conversarmos com as pessoas, ouvimo-las expressar a visão direta ou implícita de que o homem, tal como o encontramos na vida cotidiana, pode ser considerado quase o centro do universo, a “coroa da criação”, ou algo que sugira que ele é uma entidade grandiosa e importante, que suas possibilidades e seus poderes são quase ilimitados. Mas, mesmo nessas visões, há várias reservas. Dizemos que, para isso, são necessárias condições excepcionais, circunstâncias especiais, inspiração, revelação, e assim por diante.

Se, entretanto, examinarmos esse conceito de “homem”, veremos imediatamente que ele é composto por características que não pertencem a uma pessoa apenas, mas a diversos indivíduos distintos, conhecidos ou imaginários. Nunca conhecemos uma pessoa assim na vida real, seja no presente, seja como personagem histórico do passado. Pois cada um de nós tem suas próprias fraquezas, e, se olharmos de perto, a miragem da grandeza e do poder se dissolve. Porém o mais interessante não é o fato de envolvermos os outros com essa miragem, e sim que, por uma peculiaridade de nossa própria psique, nós a transferimos a nós mesmos, senão em sua totalidade, pelo menos em parte, como um reflexo. E assim, apesar de sermos todos seres humanos comuns, imaginamo-nos como esse tipo coletivo, ou algo bem próximo dele.

Se soubéssemos como ser sinceros de verdade com nós mesmos - não da forma como essa palavra costuma ser entendida, mas impiedosamente honestos -, então para a pergunta “O que somos?” não esperaríamos uma resposta reconfortante. Mas, do jeito que somos, quase todos ficaríamos intrigados e responderíamos com outra pergunta: “O que você quer dizer?”. E então perceberíamos que vivemos toda a vida sem nos fazermos essa pergunta e que consideramos líquido e certo, até axiomático, sermos “alguma coisa”, alguma coisa até valiosa, alguma coisa da qual nunca duvidamos. Ao mesmo tempo, não somos capazes de explicar a outra pessoa o que é essa coisa, não somos capazes de transmitir sequer uma noção do que seja, pois nós mesmos não sabemos o que ela é. Será que não sabemos por que, na verdade, essa “alguma coisa” não existe, apenas supomos que exista?

Não é estranho prestarmos tão pouca atenção a nós mesmos, sem nos interessarmos de fato pelo autoconhecimento? Não é estranho fecharmos os olhos para o que somos, passando a vida com a reconfortante convicção de que representamos algo de valor? Deixamos de enxergar o vazio oculto por trás da fachada criada por nossa autoilusão e não percebemos que esse valor é puramente convencional.

Certo, nem sempre é assim. Nem todos se veem de modo superficial. Há mentes inquisitivas que anseiam pela verdade do coração, buscam-na, esforçam-se por solucionar os problemas impostos pela vida, tentam penetrar a essência das coisas, compreenderem-se a si mesmos. Se raciocinarmos e pensarmos de modo sensato, independentemente do caminho seguido para a solução desses problemas, acabaremos, inevitavelmente, voltando para nós mesmos. Devemos começar solucionando o que somos e qual nosso lugar no mundo que nos rodeia. Pois, sem esse conhecimento, nossa procura não terá um centro de gravidade. As palavras de Sócrates, “Conhece-te a ti mesmo”, ainda são um princípio orientador para todos que buscam o verdadeiro conhecimento e o verdadeiro ser.

Acabamos de usar uma palavra nova - “ser” -, e, da mesma forma, é importante que a compreendamos. Temos questionado se o que pensamos a nosso respeito corresponde ao que somos de fato. Um homem, por exemplo, é médico; aquela mulher é engenheira, ou artista. Somos mesmo o que pensamos ser? Podemos nos definir como sinônimos de nossa profissão, com a experiência que ela - ou a preparação para ela - nos trouxe?

A imagem que fazemos de nós mesmos é formada pelo que vivenciamos. Cada um de nós vem ao mundo imaculado, como uma folha de papel em branco. Depois, as pessoas e as circunstâncias que nos rodeiam começam a competir entre si para manchar essa folha, para cobri-la de textos. A educação, a formação da moral, informações chamadas de “conhecimento” - sentimentos como dever, honra, consciência etc. - entram aqui.

E todas essas pessoas afirmam que os métodos adotados a fim de enxertar esses brotos conhecidos como “personalidade” humana no tronco são imutáveis e infalíveis. Lentamente, a folha vai se manchando, e, quanto mais coberta pelo tão propalado “conhecimento”, mais somos considerados sábios. Quanto mais textos no lugar chamado “dever”, mais somos tidos como honestos. E assim é com tudo o mais.

Esse é um exemplo do que chamamos de “homem”, ao qual volta e meia acrescentamos palavras como “talentoso” e “genial”. Mas esse gênio vai ficar de mau humor pelo resto do dia caso não encontre seus chinelos ao pé da cama ao acordar de manhã.

Não percebemos que não somos livres em nossas manifestações ou na vida. Nenhum de nós pode ser o que deseja ser e o que pensa que é. Nenhum de nós é como a imagem que temos a nosso respeito, e os termos “homem” e “coroa da criação” não se aplicam a nós. “Homem” - eis uma expressão de orgulho. Mas devemos nos perguntar: que tipo de homem? Evidentemente, não aquela pessoa que se irrita com trivialidades, que presta atenção em assuntos insignificantes e se distrai com tudo o que o rodeia. Para termos o direito de nos chamarmos “homens”, precisamos ser homens de fato. E esse “ser” só surge com o autoconhecimento e o desenvolvimento em direções que se tornam claras por meio do autoconhecimento.

Já tentamos nos observar quando nossa atenção não estava concentrada em algum problema específico? A maioria está familiarizada com a situação, embora talvez uns poucos tenham observado essa situação em si mesmos de maneira sistemática. Sem dúvida, temos consciência de que pensamos por meio de associações casuais: o pensamento reúne cenas e recordações desconexas e tudo que cai no campo da consciência, ou apenas a toca de leve, evoca associações casuais. O fio condutor dos pensamentos parece ininterrupto, entretecendo fragmentos de percepções anteriores com base em gravações distintas na memória. E essas gravações ficam tocando continuamente, enquanto o aparato de nosso pensamento tece habilmente fios de pensamento com esse material.

Nossas emoções seguem o mesmo caminho, agradáveis e desagradáveis - alegria e tristeza, riso e irritação, prazer e dor, simpatia e antipatia. Somos elogiados e ficamos satisfeitos; alguém nos desaprova e estraga nosso humor. Alguma coisa nova atrai nosso interesse e faz com que esqueçamos no mesmo instante o que tanto nos interessou no momento anterior. Lentamente, nosso interesse se apega a essa coisa nova, de tal forma que nos enfiamos nela da cabeça aos pés. De repente, somos possuídos, cativados por ela.

Desaparecemos. E essa propensão a sermos cativados, esse encantamento, é uma propriedade que cada um tem sob vários disfarces diferentes. Ela nos prende, toma nossas forças e nosso tempo, deixando-nos sem qualquer possibilidade de sermos objetivos e livres - duas qualidades essenciais a qualquer um que pretende seguir o caminho do autoconhecimento.

Se desejamos autoconhecimento, devemos almejar a liberdade. A meta do autoconhecimento e a possibilidade do autodesenvolvimento são tão importantes e sérias - e exigem esforços tão intensos -, que é impossível tentar realizá-las de maneiras ultrapassadas e em meio a outros interesses. Se desejamos atingir essa meta, antes de tudo devemos inseri-la na vida, que não é tão longa a ponto de nos permitir desperdiçá-la com trivialidades.

A fim de podermos aproveitar o tempo investido nessa busca, precisamos nos livrar de qualquer tipo de apego. Liberdade e seriedade. Não aquela seriedade que observa tudo sob cenho cerrado e bico nos lábios, com gestos cuidadosamente restritos e palavras filtradas pelos dentes, mas a seriedade que exige determinação e persistência, intensidade e constância na tarefa, no intuito de que, mesmo em repouso, continuemos em nossa busca.

Perguntemo-nos: somos livres? Se tivermos relativa segurança no campo material e não tivermos de nos preocupar com o dia seguinte, se não dependermos de ninguém para nosso sustento ou para determinar nossas condições de vida, estaremos inclinados a dizer sim. Mas a liberdade de que precisamos não é uma questão de circunstâncias externas. É uma questão de estrutura interior e de nossa atitude perante essas condições interiores.

Talvez, porém, pensemos que nossa incapacidade só se aplica às nossas associações automáticas e que, com relação às coisas que “conhecemos”, a situação seja diferente. No decorrer da vida, aprendemos o tempo todo e damos aos resultados desse aprendizado o nome de “conhecimento”. Mas, apesar desse conhecimento, não raro nos mostramos ignorantes, distantes da vida real e, portanto, mal adaptados a ela.

A maioria das pessoas é meio educada, como girinos; em geral, somos apenas pessoas “educadas”, com algumas informações sobre muitas coisas, de forma indistinta e inadequada. Com efeito, trata-se só de informação. Não podemos chamá-la de conhecimento, pois o conhecimento é um bem inalienável da pessoa. Não pode ser mais, não pode ser menos. Pois uma pessoa só conhece quando ela mesma é esse conhecimento. Em relação às nossas convicções - nunca as vimos mudar? Não flutuam como quaisquer outras coisas em nós? Seria muito mais preciso chamá-las de opiniões, em vez de convicções, uma vez que dependem tanto de nosso humor quanto de nossa informação, ou talvez apenas do estado de nosso estômago em determinado momento.

Cada um de nós é um exemplo até banal de autômato animado. Podemos achar que precisamos de uma “alma”, ou mesmo de um “espírito”, para agirmos e vivermos como vivemos. No entanto, talvez baste uma chave para darmos corda em nosso mecanismo. Nossas porções cotidianas de alimento nos ajudam a ganhar corda e renovar as micagens sem sentido de nossas associações, repetidas vezes. Dentre elas, selecionamos alguns pensamentos. Tentamos conectá-los a um conjunto e passá-los adiante como valiosos, e como de nossa autoria. Também colhemos emoções e sensações, humores e experiências. E, com tudo isso, criamos a miragem de uma vida interior. Chamamo-nos de seres conscientes e racionais, falamos de Deus, da eternidade, da vida eterna e de outras questões elevadas.

Falamos de tudo que podemos imaginar, julgar e discutir, definir e avaliar. O que omitimos, todavia, é falar de nós mesmos e de nosso valor real e objetivo. Pois estamos convictos de podermos obter qualquer coisa que possa estar faltando em nós.

Como já dissemos, há pessoas que sentem fome e sede da verdade. Se examinarmos os problemas da vida e formos sinceros com nós mesmos, vamos nos convencer de que já não é mais aceitável viver como vivemos antes, nem ser o que temos sido até agora. Faz-se essencial uma saída para essa situação. Mas só podemos desenvolver nossa capacidade potencial depois de limpar o material que entupiu esta nossa máquina no decorrer da vida. Para fazê-lo de maneira racional, precisamos ver o que precisa ser limpo, e onde e como. E ver isso sozinho é quase impossível. A fim de vermos essas coisas, é preciso olhar com objetividade desde o exterior. E para isso é preciso ajuda mútua.

Esse é o estado de coisas no âmbito do autoconhecimento. Para “fazer”, precisamos conhecer, mas para conhecer precisamos descobrir como conhecer. Não podemos descobrir isso sozinhos.


Trecho do Livro “Em Busca do Ser” – Capítulo 1 – G. I. Gurdjieff

Informações adicionais

  • Complexidade do Texto: Avançado
Ler 228 vezes Última modificação em Quarta, 05 Julho 2023