Portanto é importante cultivá-las lado a lado e de uma maneira balanceada.
Caso um desses fatores seja fortalecido às custas do outro, o equilíbrio da mente se perde e a meditação se torna impossível.
Concentração e plena atenção são funções distintas. Cada qual desempenha seu papel na meditação, e a relação entre elas é bem definida e delicada. A concentração é frequentemente chamada de unifocalização da mente. Consiste em forçar a mente a permanecer em um único ponto estático. Por favor, notem a palavra forçar. A concentração é sempre um tipo forçado de atividade. Pode ser desenvolvida pela força e pela pura e ininterrupta força de vontade. E uma vez desenvolvida, retém algo daquele sabor forçado. Por outro lado, a plena atenção é uma função delicada que conduz a refinadas sensibilidades. Estas duas são parceiras no trabalho de meditação. A plena atenção é a parte sensitiva. Ela nota as coisas. A concentração fornece o poder. Mantém a atenção fixa em um item. Idealmente, a plena atenção está nesta relação. Ela escolhe os objetos da atenção, e nota quando a atenção se extraviou. A concentração faz o trabalho efetivo de manter a atenção firme no objeto escolhido. Se uma das parceiras se debilita, sua meditação se desorienta.
A concentração pode ser definida como a faculdade da mente de se fixar em um objeto, com foco único, sem interrupção. Deve ser enfatizado que a verdadeira concentração é uma unifocalização saudável da mente. Isto é, um estado livre de ganância, ódio e delusão.
Uma unifocalização não-saudável também é possível mas ela não lhe conduzirá a liberação. Você pode estar unifocado em um estado de luxúria. Mas isto não lhe levará à parte alguma. Focalizar de forma ininterrupta em alguma coisa que você odeia de maneira nenhuma o ajuda. De fato, esta concentração não-saudável, mesmo quando obtida, tem uma vida curta, especialmente quando é usada para prejudicar outras pessoas. A concentração verdadeira é livre desses contaminantes.
É um estado em que a mente está reunida, ganhando com isso forma, energia e intensidade. Podemos usar a analogia de uma lente. Ondas paralelas da luz solar caindo sobre uma folha de papel podem apenas aquecer-lhe a superfície. Mas aquela mesma intensidade de luz, quando centrada por uma lente e caindo em um único ponto do papel, faz com que ele se incendeie em chamas. A concentração é a lente. Ela produz a intensidade ardente necessária para se ver por dentro das camadas mais profundas da mente. A plena atenção seleciona o objeto que a lente irá focalizar e olha através da lente para ver o que está lá.
A concentração deve ser vista como uma ferramenta. Como qualquer ferramenta, pode ser usada para o bem ou para o mal. Uma faca afiada pode ser usada para criar um belo entalhe ou para ferir alguém. Depende de quem está com a faca na mão. Com a concentração é similar. Usada de maneira apropriada, ela pode auxiliá-lo na direção da Liberação. Todavia, ela pode também ser usada a serviço do ego. Pode operar no âmbito da ambição e da competição. Você pode usá-la para dominar aos demais. Pode usá-la a serviço do seu egoísmo. O problema, porém é que sozinha, a concentração não lhe dará uma perspectiva sobre você mesmo. Não lançará luz sobre os problemas básicos do egoísmo e da natureza do sofrimento. Ela poderá ser usada para penetrar estados psicológicos profundos. Mas mesmo nestes casos, as forças do egoísmo não serão compreendidas.
Apenas a plena atenção pode fazer isto. Se a plena atenção não estiver presente para olhar através das lentes e ver o que foi descoberto, tudo isto terá sido sem valor. Apenas a plena atenção compreende. Apenas a plena atenção traz sabedoria. A concentração ainda tem outras limitações.
A concentração realmente profunda apenas pode atuar em certas condições específicas. Os budistas trabalham duro para construir salas de meditação e mosteiros. O propósito principal disto é criar um ambiente físico livre de distrações para que se possa aprender esta habilidade. Nenhum barulho, nenhuma interrupção. Igualmente importante é a criação de um ambiente emocional livre de distrações. O desenvolvimento da concentração é bloqueado pela presença de certos estados mentais que denominamos de cinco impedimentos. Eles são a avidez por prazeres sensuais, o ódio, a letargia mental, a inquietação e a hesitação mental. Já examinamos esses estados detalhadamente no capítulo 12.
O mosteiro é um local controlado onde estes tipos de ruídos emocionais são mantidos em um mínimo. Não se permite que nele membros do sexo oposto morem juntos. Portanto, existem menos oportunidades para o aparecimento da luxúria. Tampouco se permite posses pessoais. Portanto não há briga por posses e menos chance de cobiça e inveja. Um outro obstáculo para a concentração deve ser mencionado. Na concentração realmente profunda você fica tão absorvido no objeto de concentração que esquecerá das trivialidades.
Como por exemplo, seu corpo, sua identidade e tudo quanto esteja à sua volta. Aqui novamente o mosteiro é muito conveniente. É bom saber que há alguém cuidando de você zelando por todas as coisas mundanas tais como alimentação e segurança física. Sem esta garantia, pode-se hesitar em ir tão profundamente à concentração como se gostaria.
A plena atenção, por outro lado, é livre de todos esses inconvenientes.
A plena atenção não depende de nenhuma circunstância particular, física ou outra qualquer. É um fator de pura observação.
Portanto é livre para notar tudo que surgir - luxúria, ódio, ou barulho.
A plena atenção não é limitada por nenhuma condição. Ela existe em uma certa medida em cada momento, em cada circunstância que aparecer. A plena atenção também não tem um objeto fixo para se focalizar. Ela observa mudanças. E dessa forma tem um número ilimitado de objetos de atenção. Apenas olha para o que estiver passando pela mente sem categorizar. São percebidas distrações e interrupções com a mesma quantidade de atenção que os objetos formais de meditação. Em um estado de pura plena atenção, sua atenção simplesmente flui com qualquer mudança que estiver ocorrendo na mente. "Mudança, mudança, mudança. Agora isto, agora isto, e agora isto".
Você não consegue desenvolver a plena atenção à força. A força de vontade feito ranger de dentes não lhe ajudará em nada. Na verdade, bloqueará o progresso. A plena atenção não pode ser cultivada pela força. Cresce pelo percebimento, pelo soltar-se, pelo simples aquietar-se no momento e deixar-se sentir confortável com o que quer que esteja experimentando. Isto não significa que a plena atenção aconteça por si só. Longe disto. Exige energia. Exige esforço. Mas este esforço é diferente de força. A plena atenção é cultivada pelo esforço gentil, pelo esforço sem-esforço. O meditador cultiva a plena atenção pelo constante relembrar a si mesmo, de uma maneira gentil, a manter sua atenção em tudo que estiver acontecendo exatamente neste momento. Persistência e um leve toque são os segredos.
A plena atenção é cultivada pelo constante se retrazer ao estado de conscientização de maneira gentil, gentil, gentil.
A plena atenção também não pode ser usada de nenhuma maneira egoísta. É um estado de alerta sem ego. Não existe "eu" em um estado de pura plena atenção. Portanto, não há nenhum self para ser egoísta. Ao contrário, é a plena atenção que lhe dá a real perspectiva sobre si mesmo. Possibilita que você dê aquele passo mental crucial para trás, no sentido de se afastar de seus desejos e aversões, para que possa então, olhá-los e dizer: "Ah, então é assim que na verdade eu sou".
No estado de plena atenção, você se vê como realmente é. Vê seu próprio comportamento egoísta. Vê seu próprio sofrimento. E você vê como você cria aquele sofrimento. Você vê como machuca os outros. Você perfura aquelas camadas de mentiras que geralmente você conta a si mesmo e vê o que realmente se encontra lá. A plena atenção conduz à sabedoria.
A plena atenção não tenta alcançar nada. É apenas olhar.
Portanto, desejo e aversão, não estão envolvidos. Competição e luta por alcançar algo não tem lugar neste processo. A plena atenção não almeja nada. Ela apenas vê o que já está lá.
A plena atenção é uma função mais abrangente e ampla que a concentração. É uma função que tudo abraça. A concentração é exclusiva. Escolhe um único item e ignora todo o resto. A plena atenção é inclusiva. Coloca-se atrás do foco da atenção e vê com um foco amplo, com rapidez para notar qualquer mudança que ocorrer.
Se você tiver focando a mente sobre uma pedra, a concentração verá apenas a pedra. A plena atenção se coloca por detrás desse processo, consciente da pedra, consciente da concentração focando na pedra, consciente da intensidade daquele foco e instantaneamente consciente da mudança de atenção quando a concentração se distrai. É a plena atenção que nota que a distração ocorreu, e é ela que redireciona a atenção para a pedra. A plena atenção é mais difícil de cultivar que a concentração porque é uma função de profundo alcance.
A concentração é apenas a focalização da mente, como a de um feixe de raios laser. Tem o poder de queimar e abrir o caminho até as profundezas da mente e iluminar o que está lá. Mas não compreende o que vê. A plena atenção pode examinar os mecanismos do egoísmo e compreender o que está vendo. A plena atenção pode penetrar o mistério do sofrimento e o mecanismo do desconforto. A plena atenção pode tomá-lo livre.
Aqui existe novamente aquela mesma charada da chave esquecida dentro da casa trancada. A plena atenção não reage ao que vê. Apenas vê e compreende. A plena atenção é a essência da paciência. Portanto, o que quer que você veja deve ser simplesmente aceito, conhecido e observado sem paixão. Isto não é fácil, mas é absolutamente necessário. Somos ignorantes. Somos egoístas, cobiçosos e prepotentes. Somos luxuriosos e mentimos. Estes são fatos.
Plena atenção significa ver esses fatos e sermos pacientes conosco, nos aceitando como somos. Isto é nadar contra a correnteza. Não gostamos de aceitar isto. Queremos negar isto. Mudá-lo ou justificá-lo.
Mas a aceitação é a essência da plena atenção. Se quisermos crescer em plena atenção, devemos aceitar o que ela descobre. Pode ser tédio, irritação ou medo. Pode ser fraqueza, inadequação ou deficiências.
Seja o que for, é assim que somos. Esta é a realidade.
A plena atenção simplesmente aceita o que está lá. Se você desejar crescer na plena atenção, o único caminho é aceitar pacientemente.
A plena atenção só cresce de uma maneira: pela prática contínua da plena atenção, apenas tentando estar atento, e isto significa ser paciente. O processo não pode ser forçado nem apressado.
Ele se desenvolve no seu próprio ritmo.
Concentração e plena atenção andam de mãos dadas no trabalho de meditação. A plena atenção direciona o poder da concentração.
A plena atenção é o administrador da operação. A concentração fornece a força através da qual a plena atenção pode penetrar até os níveis mais profundos da mente. A cooperação entre ambas resulta em insight e compreensão. Elas devem ser cultivadas juntas, de uma maneira equilibrada. Deve-se dar um pouco mais de ênfase à plena atenção porque a plena atenção é o centro da meditação. Os níveis mais profundos de concentração, na verdade, não são realmente necessários para se realizar o trabalho da liberação. Ainda assim, um equilíbrio é essencial. Muita conscientização sem a devida calma para equilibrá-la resultará em um estado de excessiva e desenfreada sensitividade, similar ao abuso de LSD.
Por outro lado, concentração exagerada sem uma proporção de equilíbrio da conscientização resultará na síndrome do "Buda de Pedra". O meditador fica tão tranquilo que senta-se ali como uma pedra. Ambas as situações devem ser evitadas.
Os estágios iniciais do cultivo mental são particularmente delicados. Neste ponto, dar muita ênfase à plena atenção apenas servirá para retardar o desenvolvimento da concentração. No início da meditação, uma das primeiras coisas que perceberá é como a mente é extraordinariamente ativa. A tradição Theravada chama este fenômeno de "mente de macaco". A tradição Tibetana a compara a uma cachoeira de pensamentos. Caso você nesta fase enfatize a função da conscientização, haverá tanto a perceber que a concentração será impossível. Mas não se desencoraje. Isto acontece com todo mundo.
Existe uma solução simples. No começo, ponha todo seu esforço na unifocalização. Apenas continue trazendo a atenção de volta dos devaneios. As instruções completas sobre como fazer isto estão nos capítulos 7 e 8. Após alguns meses terá desenvolvido a força da concentração. Então poderá usar sua energia para a plena atenção.
Entretanto, não vá muito longe com a concentração ao ponto de entrar em estupor.
A plena atenção ainda é o mais importante dos dois componentes.
Deve ser construída assim que puder fazê-lo confortavelmente.
A plena atenção fornece o fundamento necessário para o desenvolvimento subsequente de uma concentração mais profunda.
Os maiores erros nesta área de equilíbrio se auto corrigirão com o passar do tempo. A concentração correta se desenvolve naturalmente no despertar da forte plena atenção. Quanto mais desenvolver o fator de percebimento, mais rápido notará a distração e mais rápido se afastará dela, retornando ao objeto formal da atenção. O resultado natural é um aumento da concentração. E à medida que a concentração se desenvolve, ela ajuda o desenvolvimento da plena atenção.
Quanto maior for seu poder de concentração, menor será a possibilidade de ser lançado em uma longa cadeia de análises sobre a distração.
Apenas note a distração e volte a atenção para onde ela supostamente deveria estar.
Portanto os dois fatores tendem a se equilibrar e muito naturalmente apoiam o crescimento um do outro. A única regra que você deve seguir neste ponto é, no começo, colocar seu esforço na concentração até que o fenômeno da mente de macaco tenha se arrefecido um pouco. Depois disto, dê ênfase à plena atenção. Caso perceba que esteja ficando frenético, enfatize a concentração. Se notar que está entrando num estupor, enfatize a plena atenção. Acima de tudo, deve se enfatizar a plena atenção.
A plena atenção guia seu desenvolvimento na meditação porque a plena atenção tem a habilidade de ser consciente de si mesma.
É a plena atenção que lhe dará uma perspectiva na sua prática. A plena atenção lhe dirá como está agindo. Mas não se preocupe muito com isto. Isto não é uma corrida. Não está competindo com ninguém, e não há nenhuma programação.
Uma das coisas mais difíceis de aprender é que a plena atenção não depende de nenhum estado emocional ou mental. Temos certas imagens sobre meditação. A meditação é algo feito em cavernas quietas, por pessoas tranquilas que se movimentam vagarosamente Estas são condições de treinamento. São estabelecidas para estimular a concentração e para se aprender a habilidade da plena atenção.
Uma vez que tenha aprendido esta habilidade, você pode e deve dispensar estas restrições de treinamento. Não precisa andar em passo de caracol para estar em plena atenção. Nem mesmo precisa estar calmo. Pode estar com plena atenção enquanto resolve problemas difíceis de cálculo. Pode estar com plena atenção no meio de uma partida de futebol. Pode até mesmo estar com plena atenção no meio de um acesso de fúria. Atividades físicas ou mentais não são barreiras para a plena atenção. Caso perceba sua mente extremamente ativa, apenas observe a natureza e o grau desta atividade.
Isto é apenas parte do espetáculo que está passando no seu interior.
Mindfulness in Plain English - Capítulo XIV - Bhante Henepola Gunaratana