Quinta, 02 Dezembro 2021

O Santo que Levitava

Escrito por Paramahansa Yogananda
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Vi um iogue manter-se no ar, a certa distância do chão, perante um grupo de pessoas, ontem à noite - contava meu amigo Upendra Mohun Chowdhury, muito impressionado.

Respondi-lhe com um sorriso de entusiasmo: - Talvez eu possa adivinhar o nome dele. Não era Bhádurí Mahásaya, residente em Upper Circular Road?

Upendra acenou com a cabeça afirmativamente, um pouco desapontado por não ser o portador de notícias de primeira mão. Minha curiosidade pelos santos era bem conhecida entre meus amigos; eles ficavam encantados quando me podiam conduzir a uma nova pista.

O iogue vive tão perto de minha casa que o visito com frequência. - O rosto de Upendra expressou agudo interesse e então lhe fiz outra confidência:

- Ele me permitiu assistir a feitos notáveis. Bháduri Mahásaya é perito nos vários Pranayamas da antiga óctupla ioga ensinada por Patânjalí. Certa vez, realizou o Bliastríka Pranayama diante de mim com força tão assombrosa que parecia uma autêntica tempestade a se desencadear no quarto! A seguir, extinguiu aquela respiração, que mais parecia uma série de trovões, e permaneceu imóvel em elevado estado de superconsciência54. A aura de paz depois da tormenta foi tão vívida que jamais a esqueci.

- Ouvi dizer que o santo nunca sai de casa. - O tom de voz de Upendra exprimia certa incredulidade.

- Realmente, é verdade! Durante os últimos vinte anos, ele sempre viveu encerrado em casa. Só abranda a regra que impôs a si mesmo nas épocas de nossos festivais sagrados, quando se desloca até a calçada, diante de sua própria porta! Os mendigos aglomeram-se ali porque Bháduri Mahásaya é conhecido por seu terno coração.

- Como pode permanecer no ar, desafiando a lei da gravidade?

- O corpo de um iogue perde sua densidade depois de praticar certos Pranayamas. Então, pode levitar-se ou pular daqui para ali, à maneira de uma rã que saltita. Até mesmo santos não praticantes de qualquer ioga formal foram vistos em levitação durante um estado de intenso fervor a Deus.

- Gostaria de conhecer melhor este sábio. Você costuma comparecer às suas reuniões noturnas? - Os olhos de Upendra cintilavam de curiosidade.

- Sim, vou com frequência. Divirto-me imensamente, ele é muito espirituoso em sua sabedoria. Às vezes, meu riso prolongado estraga a solenidade de suas reuniões. O santo não se desgosta mas seus discípulos me comem com os olhos, furiosos.

Naquela mesma tarde, ao voltar da escola para casa, passei pelo claustro de Bháduri Mahásaya e decidi fazer-lhe uma visita. Para o grande público, o iogue mantinha-se inacessível. Um discípulo solitário, residente no andar térreo, defendia o retiro de seu mestre. O estudante era uma espécie de burocrata, estrito em sua rotina; perguntou-me, formalizado, se eu tinha “entrevista marcada”. Seu guru apareceu no momento exato para me salvar de uma expulsão sumária.

- Deixe Mukunda passar quando ele quiser. - E o sábio piscou um olho para mim.

- Minha regra de isolamento não existe para meu próprio conforto, mas para o dos outros. Gente mundana não aprecia a franqueza que lhe destrói as ilusões. Os santos não são apenas raros, mas desconcertantes. Até nas Escrituras se pode, frequentemente, encontrá-los embaraçantes!

Segui Bháduri Mahásaya a seus aposentos austeros no andar superior, donde raras vezes saía. Os mestres geralmente ignoram o panorama do bulício do mundo e permanecem fora de foco, enquanto ocupam o centro dos milênios. Os contemporâneos de um sábio -não são apenas os de seu estreito presente.

- Maáríshi, entre os iogues que eu conheço, o senhor é o único que vive sempre dentro de casa.

- Às vezes, Deus planta seus santos em solos inesperados para não pensarmos que O podemos reduzir a uma regra!

O santo isolou seu vibrante corpo na posição de Lótus. Septuagenário, não demonstrava sinais de decrepitude ou de vida sedentária. C de vigor e aprumo, tinha um porte ideal. Sua face, segundo descrições de livros antigos, era a de um ríshi. De cabeça nobre, e abundante barba, sentava-se invariavelmente ereto e firme, com os olhos imóveis focalizados na Onipresença.

O santo e eu entramos em meditação. Uma hora depois, sua voz suave alcançou meus ouvidos.

- Você entra em silêncio frequentemente, mas já desenvolveu anubháva?56 - Em outras palavras, ele me recordava que eu devia amar a Deus mais do que à meditação.

- Não confunda a técnica com a meta.

Ofereceu-me várias mangas. Com a inteligência espirituosa que eu achava encantadora em sua natureza grave, ele comentou:

- Geralmente as pessoas apreciam mais Jala Yoga (união com o alimento) do que Dhyâna Yoga (união com Deus).

Seu trocadilho afetou-me sonoramente.

- Que gargalhada você tem! - Uma cintilação afetuosa apareceu em seus olhos. Trazia o rosto sempre sério, mas nele se distinguia a marca sutil de um extático sorriso. Seus grandes olhos de Lótus escondiam um riso divino.

- Aquelas cartas vêm da longínqua América. - O sábio indicou diversos envelopes volumosos sobre

a mesa.

- Mantenho correspondência com algumas sociedades cujos membros se interessam por ioga. Estão descobrindo a índia outra vez, com um senso de orientação mais apurado que o de Colombo!

Sinto-me feliz em ajudá-los. O conhecimento da ioga, como a luz do dia, é livre para todos que o desejam receber. O que os ríshis perceberam como essencial à salvação humana não precisa ser diluído para uso do Ocidente. Semelhantes em alma, embora diferentes em experiência externa, nem o Ocidente nem o Oriente florescerão se alguma forma disciplinar de ioga não for praticada.

O santo demorou em mim seus olhos serenos e não percebi que seu discurso era uma velada profecia. Somente agora, ao escrever estas palavras, compreendo o pleno significado das insinuações casuais, muitas vezes feitas por ele, de que, no futuro, eu levaria à América os ensinamentos da índia.

- Maháríshi, por que não escreve um livro sobre ioga para benefício do mundo?

- Estou treinando discípulos. Eles e seu séquito de estudantes servirão como volumes vivos, provas concretas contra a natural desintegração do tempo e as artificiais interpretações dos críticos.

Permaneci sozinho com o iogue até seus discípulos chegarem à noite. Bháduri Mahásaya começou um de seus inimitáveis discursos, Como inundação pacífica, ele impeliu para longe os detritos mentais de seus ouvintes, levando-os a flutuar em direção a Deus. Suas parábolas admiráveis eram expressas em fluente bengali.

Nessa noite, Bháduri explanou várias questões filosóficas relacionadas com a vida de Mirábaí, princesa medieval de Rajput, que abandonou a corte para buscar a companhia dos santos. Um grande sannyási, Sanatana Goswâmi, recusou-se a recebê-la por ser mulher; a resposta dela trouxe-o humildemente a seus pés.

- Diga ao Mestre - respondera ela - que eu ignorava existir outro Ser Masculino no universo além de Deus; perante Ele, não somos todos seres femininos? (uma concepção, encontrada nas Escrituras, que O têm como único Princípio Criador Positivo, cuja criação nada mais é que máya passiva).

Mirábaí compôs muitas canções de êxtase, que são, ainda hoje, um dos tesouros da índia; aqui traduzo uma delas:

“Se, pelo banho diário, Deus pudesse ser conhecido, eu depressa me tornaria uma baleia no oceano profundo; se comendo raízes e frutos, Ele pudesse ser apreendido, alegremente eu escolheria a forma de uma cabra; se o desfiar de rosários O descobrisse, em gigantescas contas diria minhas preces; se curvar-me ante imagens de pedra O revelasse, humildemente adoraria uma montanha de sílica; se bebendo leite, o Senhor pudesse ser ingerido, muitos bezerros e crianças O conheceriam; se abandonando a esposa, alguém pudesse intimar Deus a visitá-lo, não haveria milhares de eunucos? Mirábaí sabe que para encontrar o Deus Único é indispensável somente o Arnor.”

Diversos estudantes colocaram rúpias nos chinelos de Bháduri, postos de lado, quando ele sentou na posição iogue. Esta respeitosa oferenda é um costume na índia e indica que o discípulo depõe seus bens materiais aos pés do guru. Os amigos agradecidos são o próprio Deus disfarçado que vela pelo que é Seu.

- Mestre, o senhor é maravilhoso! - Um estudante, ao se despedir, mirou ardentemente o sábio patriarcal. - Renunciou às riquezas e ao conforto para buscar Deus e nos ensinar a sabedoria!

- Era do conhecimento de todos que Bháduri Mahásaya renunciara a uma opulenta herança em sua meninice quando, com a mente unificada, entrou ila senda da ioga.

- Você está invertendo as coisas! - A face do santo expressava meiga repreensão.

- Deixei algumas rúpias desprezíveis, alguns prazeres mesquinhos, por um império cósmico de interminável beatitude. Como dizem, então, que neguei tudo a mim mesmo? Conheço a alegria de partilhar o tesouro. Chamam a isto sacrifício? As multidões míopes do mundo são as verdadeiras renunciantes! Renegaram a posse de um

bem divino sem paralelo, por um mísero punhado de brinquedos terrenos!

Ri-me disfarçadamente deste paradoxo sobre a renúncia que reveste com o manto de Creso qualquer santo mendicante, enquanto transforma todos os milionários orgulhosos em mártires inconscientes.

- A ordem divina toma providência sobre nosso futuro mais sabiamente que qualquer companhia de seguros. - As palavras concludentes do mestre eram o credo comprovado de sua fé.

- O mundo está cheio de crentes preocupados com a segurança externa. Seus pensamentos amargos são como cicatrizes em suas testas. Mas Quem nos deu ar e leite, desde o primeiro sopro de vida, sabe como prover Seus devotos dia após dia.

Continuei minhas peregrinações à casa do santo, depois das aulas. Com silencioso fervor, ele me ajudou a alcançar anubbáva. Um dia, mudou-se para Ram Mohan Roy Road, a grande distância de minha casa. Seus amorosos discípulos lhe haviam construído um novo eremitério, conhecido como “Nagendra Math”.

Embora avance muitos anos em minha história, registrarei aqui as últimas palavras que ouvi de Bháduri Mahásaya. Pouco antes de embarcar para o Ocidente, procurei-o e ajoelhei-me com humildade para receber sua bênção de despedida:

- Filho, vá à América. Tome a dignidade da veneranda índia como seu escudo. A vitória está escrita em sua fronte; o nobre e distante povo o receberá bem.


Livro “Autobiografia de um Iogue” – Capítulo 7 − Yogananda

Informações adicionais

  • Complexidade do Texto: Intermediário
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