Este termo é talvez o que melhor resume tudo o que representa o Zen, porque ensina a maneira de uma total realização da mente.
Iluminação é meramente outro nome para o completo desenvolvimento da mente "interior". Fora do profundo e amplo domínio da Mente não há nada que deva ser iluminado. Assim, a única finalidade do Zen, é nos permitir entender, realizar e aperfeiçoar nossa mente. A mente e a matéria são as chaves dos estudos Zen.
O budismo e a psicologia moderna nos dizem que a mente tem muitos "aspectos e estratos", alguns dos quais são de especial interesse para a psicologia, outros para a psicologia e a religião. Porém o Zen não se interessa nesses diferentes "terrenos", mas em penetrar a Essência, no centro mesmo da mente, porque sustenta que, uma vez que se chega a esse centro, todo o resto é relativamente insignificante e claro como o cristal.
Antes de descrever este "centro interior", vejamos o que diz o budismo sobre os "níveis" gerais da mente. Segundo muitos sábios budistas, a maneira mais simples e explícita de delinear "a estrutura da mente" é descrevê-la como se tivesse três aspectos ou capas.
O primeiro aspecto, ou capa "exterior", é a faceta manifestante e ativa (Yung, em chinês). Isto inclui as funções ativas mentais (das oito consciências), tanto ascética como emocional, abstrata como simbólica - como o amor, o ódio, o desejo, a razão, a fantasia, a memória e outros. Este é um aspecto óbvio, do qual todo ser humano tem uma experiência direta. Tem sido um estudo primário no terreno geral da psicologia, porém é um assunto no qual o Zen se interessa pouco.
O segundo aspecto, ou capa "interior", da mente é chamado em chinês "hsiang"’, o que significa "forma" ou "natureza". Exatamente, o que é esta natureza da mente? Para dizer brevemente, a natureza da mente é a consciência de si mesmo. Ser consciente de si mesmo, significa, ser consciente dos resultados do jogo da consciência, ou ser consciente das impressões recebidas ou das imagens captadas pela consciência. Ser consciente desse jogo é uma experiência pura absoluta, na qual não há sujeito conhecedor nem objeto conhecido, uma vez que o conhecedor e o conhecido se uniram em uma entidade de "puro sentimento". Neste "puro sentimento" não há lugar para a dicotomia do dualismo.
A pura consciência de si mesmo é intrínseca e experimentalmente não-dualística, como os sábios budistas e de outras religiões testemunharam através dos séculos. A consciência de si mesmo (a natureza da mente) não é a função do conhecimento, senão esse mesmo conhecimento em sua forma mais intrínseca. Quando descobrimos esta consciência de si mesmo, todo ser muda. Quando se realiza qualquer atividade, se sente que se transcende esta atividade; se caminha, se fala, porém se sente que este caminhar e falar já não é como antes... agora se caminha com a mente aberta. Realmente sabe que é ele quem caminha; o diretor - ele mesmo - está sentado no centro de sua mente, controlando todas as suas ações com espontaneidade - caminha com uma clara consciência e com o espírito iluminado. Em outras palavras, o homem que realiza a consciência de si mesmo sente que já não é o servo obediente de um impulso cego, senão que é seu próprio amo. Sente então que a gente comum, cega ante sua consciência inata e clara, percorre a rua como cadáveres vivos.
Se esta consciência de si mesmo pode ser retida e cultivada, se chegará a experimentar o aspecto iluminado da mente, chamado por místicos Consciência Pura. Quando esta consciência iluminada é cultivada em toda sua extensão, se vê claramente que abarca todo o Universo. Muitos místicos, budistas, equivocadamente consideraram este estado o mais alto, o estado de "nirvana", o estágio final da unificação com o Universal ou Consciência Cósmica. Porém, segundo o Zen, este estado está ainda nas margens do "samsara". Os Yoguis que chegaram a esse estado seguem ofuscados pela ideia monista, profundamente enraizada, são incapazes de cortar o cordão umbilical da aderência sutil às coisas e de livrar-se, para chegar à "outra margem" da liberdade perfeita. Assim, ainda que a consciência de si mesmo, ou sua forma cultivada - a consciência iluminada - é uma chave para todas as realizações internas, básica e qualitativamente é, entretanto, uma aderência.
A, iluminação budista não se consegue mantendo ou aumentando a consciência de si mesmo. Pelo contrario: se consegue desatando qualquer vínculo que nos ate a esta consciência iluminada; somente transcendendo-a se pode chegar ao centro mesmo da Mente, ao perfeito Vazio, iluminador, livre e inteiramente insubstancial, Este caráter iluminador do Vazio, um vazio dinâmico, é a essência (Ti em chinês) da Mente.
O importante é que, quando se menciona a palavra "Essência", a gente pensa em seguida em algo essencialmente concreto; e quando se menciona a palavra "Vazio", em um "nada" morto e estático. Porém, ambos os conceitos perdem o sentido da palavra chinesa "Ti" (Essência), e da palavra sânscrita "sunyata" (Vacuidade), e expõem a limitação do pensamento humano, finito e unilateral. A forma comum de pensar consiste em aceitar a ideia de que algo existe ou não existe, porém nunca que é ambas as coisas, existente e não-existente ao mesmo tempo. A é A ou não A, porém nunca é, ao mesmo tempo, A e não A.
Do mesmo modo, o veredito do sentido comum sobre o vazio frente a existência é: "O vazio é a não-existência, e a existência não é o vazio". Esta forma de raciocinar, considerada correta e razoável, é defendida pelos lógicos como "sine qua non" e aceita pelo sentido comum com fins práticos. Porém, o budismo não segue invariavelmente este "sine qua non", especialmente quando trata da verdade de sunyata. Diz o Prajna Paramita: "A forma não difere do Vazio, e o Vazio não difere da Forma: Forma é Vazio e Vazio é Forma". O budismo diz também que é devido ao Vazio que as coisas existem e que, pelo mesmo fato que as coisas existem, devem ser o vazio. Destaca que o Vazio e a Existência são complementares entre si, e que não se opõem: se incluem e se abraçam, mais do que se excluem ou se negam. Quando os seres de sensibilidade normal vêem um objeto, vêem só seu aspecto existente, ou seu aspecto vazio.
Porém um ser iluminado vê ambos aspectos ao mesmo tempo. Esta não distinção, ou "unificação" como o chamam algumas pessoas, do Vazio e da Existência, é chamada "Doutrina não discriminativa do caminho do Meio do Budismo Mahayana". Portanto, o Vazio é entendido no budismo não como algo negativo, nem significa ausência ou extinção. O Vazio é simplesmente um termo que denota a natureza não substancial e não pessoal dos seres, é um sinal de indicação do estado de absoluto desprendimento e liberdade.
O Vazio não é fácil de explicar. Não é definível ou descritível. Como disse o mestre ZEN Huai Jang: "Qualquer coisa que dissera passaria por alto o essencial". O Vazio não pode descrever-se ou expressar-se por palavras. Isto se deve a que a linguagem humana foi criada principalmente para designar coisas e sentimentos existentes.
Tratar de discutir o Vazio dentro dos limites de uma língua limitada pelas formas da existência é bobo e equivocado. Por isso os mestres Zen, gritam, choram, dão patadas e batem. Pois que outra coisa podem fazer para expressar diretamente este indescritível vazio, sem recorrer às palavras?
O ensinamento budista sobre o Vazio é compreensivo e profundo, e requer muito estudo antes de ser entendido. Este estudo preliminar é indispensável para entender o Zen.
Voltando ao nosso tema original, a Essência, ou centro mais profundo da mente, devemos procurar defini-la precisamente. A Essência é o Vazio lluminador como tal. Um budista Zen iluminado não somente conhece o aspecto iluminado da consciência, senão que, mais importante ainda, conhece o aspecto vazio da mente. A iluminação com atadura é descrita pelo Zen como "água morta", porém "a iluminação sem atadura, o "Vazio Iluminador" é elogiada como "a grande vida". As frases escritas por Shen Hsiu para demonstrar a sua compreensão do Zen ao Quinto Patriarca, demostram que ele sabia apenas o aspecto iluminador e não vazio da mente. Quando sua "Consciência, polida como um espelho" se encontrou diante de "Desde o principio nada existiu" de Hui Neng, se converteu em algo tão insignificante que perdeu a competição para o título de "Sexto Patriarca do Zen". O "Desde o principio nada existiu" de Hui Neng expressa indubitavelmente a Essência da Mente e também o centro mais profundo do Zen. Por causa dessa compreensão profunda Neng Hui conquistou o título do Sexto Patriarca.
Há duas histórias interessantes que explicam a importância de compreender a natureza vazia da própria mente.
A. Um dia um anjo que retornava voando para o céu viu abaixo dele uma floresta vigorosa, envolta em um grande brilhante halo de luz. Como havia atravessado o céu muitas vezes naturalmente havia visto inúmeros lagos, montanhas e florestas, mas nunca os tinha prestado muita atenção. Naquele dia notou algo diferente: uma selva cercada por uma aura brilhante, de onde surgiam raios de luz para todas as partes do céu. Ele disse: "Ah! Deve haver algum ser iluminado nesta floresta. Eu vou descer e ver quem é".
Ao descer o anjo viu um Bodhisattva sentado calmamente sob uma árvore absorvido em meditação profunda. Então ele disse: "Vamos ver que tipo de meditação pratica". E o anjo abriu seus olhos celestiais para ver que objeto ou ideia se concentrou a mente daquele iogue. Os anjos geralmente podem ler a mente dos iogues, mas desta vez, para sua surpresa, o anjo não encontrou nada. Girou e girou ao redor do iogue e finalmente, ele mesmo entrou em samadhi, mas continuou sem encontrar nada na mente do Bodhisattva. Finalmente o anjo se transformou em um ser humano, circulou três vezes o iogue, curvou-se diante dele e disse:
"Presto homenagem ao auspicioso;
Eu vos saúdo,
Ó Senhor de todos os seres sencientes!
Acorde, retorne do samadhi,
e me diga em que você estava meditando.
Todos os meus poderes milagrosos estão esgotados,
e ainda assim eu não consegui descobrir
O que está em sua mente.
O iogue sorriu. Mais uma vez, o anjo disse:
Presto homenagem. Em que você meditava?
O iogue continuou sorrindo e guardou silêncio".
B. Hui Chung, que era professor de Zen do Imperador Su Tsung da dinastia Tang, era muito respeitado pelo imperador, como para todos os zen-budistas da China. Um dia, um famoso monge indiano, chamado "Grande Orelha Tripitaka", chegou à capital. Dizia-se que este monge podia ler a mente dos outros sem a menor dificuldade ou hesitação.
O Imperador estava ciente desses dons, e o monge indiano foi chamado ao palácio real para mostrar seus poderes ao Mestre Hui Chung.
Diante da corte e das pessoas reunidas, Hui Chung perguntou a Grande Orelha Tripitaka: você realmente tem o poder de ler a mente dos outros? Sim, sua reverência, eu tenho foi a resposta, e em seguida, houve o seguinte diálogo:
Hui Chung: Diga-me então a onde vai a minha mente agora?
Grande Orelha Tripitaka: - Vossa Reverência é o mestre zen de uma nação: como poderia ir a Ssu Chuan ver as corridas de barco?
Hui Chung : "Diga-me agora: a onde vai a minha mente?
Grande Orelha Tripitaka: - Vossa Reverência é o mestre zen de uma nação: como você poderia ir para a ponte de Tien Ching para observar os macacos?
Depois de um momento de silêncio, Hui Chung perguntou:
- Agora, onde está a minha mente?
Desta vez, Grande Orelha Tripitaka se concentrou, com grande esforço por um longo tempo, mas não conseguiu encontrar em nenhuma parte um pensamento apenas do mestre Zen (e teve que admitir o fracasso).
Então Hui Chung disse:
- Oh, espectro de raposa selvagem, onde está agora o seu poder telepático?
Quero deixar bem claro um ponto. Esta divisão da mente em 3 aspectos, ou "capas" não deve ser tomada literalmente porque, de fato, essas "capas" ou "aspectos" não existem. A Mente é um grande TODO, sem partes ou divisões. As características manifestantes, iluminadoras e não substanciais da mente existem simultânea e constantemente, são inseparáveis e indivisíveis em sua totalidade. É só para o mestre dar mais clareza ao assunto que estes três "aspectos" tem sido mencionados.
Traduzido e adaptado ao idioma português por Sabedoria Milenar. The Practice of Zen - Capitulo I - Chang Chen-Chi