Este "yana imperial", conhecido no Tibete como dzogchen, "a grande perfeição", foi levado para o Tibete no século VIII por dois grandes mestres indianos, o Siddha Padmasambhava e o pandita Vimalamitra.
No século XIV os múltiplos aspectos e níveis da doutrina do Ati foram reformulados por Longchen Rabjam, cuja percepção se dizia igualar-se à de Buda. O grande vidhyadhara (‘detentor da visão’) Jigme Lingpa (1730-1798) foi a figura principal da linhagem Ati destes últimos séculos. Ele teve três visões nas quais recebeu a transmissão do Ati diretamente do próprio Longchen Rabjam. Depois disso escreveu muitos comentários dos principais textos de Longchen Rabjam, nos quais condensou e tornou a sistematizar a tradição do Ati, dando-lhe a forma que tem hoje.
Na visão do Ati tudo é completo e impecável como está. Tudo que acontece é demonstração da mente de sabedoria primordial e não se separa dela. Essa percepção primordial é o terreno de onde surgem tanto a confusão quanto o esclarecimento e no qual ambos se desvanecem.
A natureza dessa percepção é o vazio profundo e brilhante e é ainda mais fundamental do que a condição de Buda, tendo em vista que não tem propensão nem mesmo para a iluminação. Ati é considerado o "veículo sem esforço", porque o que a mente faz naturalmente (desde que não seja desviada para nenhuma particularidade) reside na visão profunda do Ati, que não é diferente da iluminação propriamente dita. Mas o leitor não deve pensar que isso significa que o caminho espiritual, com todas as suas disciplinas, é supérfluo, e que basta descansar e ficar esperando pela iluminação. A inércia do Ati é um exercício perfeito de simplicidade, de ver constantemente dentro das complexidades da mente a essência da própria percepção, radiante e desvinculada. No trecho introdutório curto que apresentamos abaixo, Jigme Lingpa nos dá uma impressão vigorosa do Ati, aqui chamado Maha-Ati (‘Grande Ati’), além de indicar algumas das inúmeras ciladas que o cercam.
ESTE É O RUGIDO DO LEÃO que domina as extravagantes confusões e equívocos dos meditadores que abandonaram os vínculos materialistas para meditar na Essência Mais Íntima.
O Maha-Ati está além das concepções e transcende tanto apego quanto desapego; é a própria essência da visão intuitiva transcendental. Este é o estado imutável de ausência de meditação, no qual existe atenção, mas não existe apego. Entendendo isto, presto uma homenagem eterna ao Maha-Ati, com grande simplicidade:
"Aqui está a essência profunda do tantra do Maha-Ati, O núcleo mais profundo dos ensinamentos de Padmakara a força vital das dakinis.
É o ensinamento supremo dos nove veículos. Só pode ser transmitido por um guru da linhagem da mente, e não através de meras palavras.
Apesar disso, escrevi isto em proveito dos grandes meditadores que devotam-se ao ensinamento supremo.
Este ensinamento foi retirado do tesouro do Dharmadhatu e não surge de apego a teorias e abstrações filosóficas".
Primeiro o discípulo tem de encontrar um guru completo com o qual teve uma boa ligação cármica. O mestre precisa ser detentor da transmissão da linhagem da mente. O discípulo precisa ter devoção e fé sinceras, que possibilitam a transmissão do mestre.
O Maha-Ati é da maior simplicidade. É o que é. Não consegue ser demonstrado por analogia; nada pode obstruí-lo. Não tem limitação e transcende todos os extremos. É a realidade nítida, que não muda de forma ou coloração. Quando nos identificamos com este estado, até o desejo de meditar se dissolve; somos libertados das cadeias de meditação e das filosofias e teorias de mundo e surge em nosso íntimo plena convicção. O pensador desertou. Já não existe nenhuma vantagem a ser adquirida com pensamentos ‘bons’, nem nenhum prejuízo a sofrer com pensamentos ‘maus’. Os pensamentos neutros já não nos conseguem enganar. Nos unificamos com o insight transcendental e com o espaço infinito. Então encontramos sinais de progresso no caminho. Já não existe questão alguma de confusões ou equívocos acontecendo ao redor.
Esse ensinamento é o rei dos yanas, mas podemos classificar seus meditadores; há os que são muito receptivos a ele, os que são menos receptivos e os que a ele são avessos. Os discípulos mais receptivos são difíceis de encontrar e às vezes acontece do aluno e o mestre não serem capazes de manter um verdadeiro ponto de encontro. Neste caso, nada se concretiza e podem surgir equívocos no que se refere à natureza do Maha-Ati.
Os menos receptivos começam estudando a teoria e gradualmente desenvolvem a sensibilidade e o verdadeiro entendimento. Hoje em dia muitas pessoas consideram a teoria como se fosse a meditação. A meditação dessas pessoas pode ser clara e desprovida de pensamentos e talvez seja relaxante e agradável, mas é apenas a vivência temporária do êxtase. Estas pessoas acreditam que isso é meditação e que ninguém sabe mais do que elas, e pensam: "Cheguei a este entendimento" e ficam orgulhosas de si mesmas. Assim, se não há nenhum mestre competente, o que vivenciam é apenas teórico. Como é dito nos textos do Maha-Ati, "a teoria é como um remendo num casaco: um dia vai cair". Geralmente as pessoas procuram fazer distinção entre ‘bons’ e ‘maus’ pensamentos, como se tentassem separar leite de água. É bastante difícil aceitar as experiências negativas da vida, mas ainda mais difícil é encarar as experiências positivas como parte do caminho. Até as pessoas que afirmam ter chegado ao estágio mais elevado de realização estão completamente envolvidas com a fama e com preocupações mundanas. São atacadas pelo devaputra, a força maligna que provoca a atração para os objetos dos sentidos. Isso significa que ainda não realizaram a liberação do Eu dos seis sentidos. Essas pessoas consideram a fama uma coisa muito extraordinária e miraculosa. Isso é como afirmar que um corvo é branco. Mas aquele que se dedica inteiramente à prática do Dharma sem se preocupar com a fama e com a glória mundanas não deve ficar satisfeito demais consigo mesmo por ter chegado a um certo desenvolvimento na meditação. Deve praticar a ioga do guru nos quatro períodos do dia a fim de receber as bênçãos do guru e fundir a própria mente com a dele, abrindo o olho do insight. Tendo passado por essa experiência, não convém descartá-la. Daí por diante o iogue deve, ele próprio, se dedicar a essa prática com perseverança infatigável. Subseqüentemente ele sentirá o vazio de forma mais tranqüila ou vivenciará uma clareza e um insight maiores. Ou ainda, talvez comece a perceber os defeitos dos pensamentos discursivos e com isso desenvolver a sabedoria da discriminação. Alguns indivíduos são capazes de usar tanto os pensamentos como a ausência de pensamentos como meditação, mas é preciso ter em mente que o que percebe o que está acontecendo é sempre o pulso firme do ego.
Cuidado com o obstáculo sutil que é tentar analisar o que vinvenciamos. Isso é um grande perigo. É muito cedo para colocar o rótulo de dharmakaya em todos os pensamentos. O remédio é a sabedoria atemporal, que é imutável e infalível. Uma vez libertado da servidão da especulação filosófica, o meditador desenvolve uma consciência penetrante em sua prática. Se analisar o que vivenciou na meditação e na pós-meditação, perde-se e comete muitos erros. Se deixar de entender essas deficiências, nunca conseguirá atingir o estado desperto atemporal, que está além de qualquer conceitualização desse ou de outro tipo. Terá apenas uma visão conceitual e niilista de vazio, que é a característica dos yanas menos importantes.
Também é um erro considerar o vazio uma miragem, como se fosse apenas uma combinação de percepções vívidas com o nada. Isso é que vivenciamos com os tantras menos importantes, o que poderia ser induzido pela prática do mantra svobhava. E é um erro também, analogamente, tendo aquietado os pensamentos discursivos, descuidar da lucidez e considerar a mente apenas um espaço em branco. Vivenciar o verdadeiro insight é perceber simultaneamente a quietude e os pensamentos ativos. Segundo o ensinamento do Maha-Ati, a meditação consiste em ver tudo o que surge na mente, seja o que for, e simplesmente permanecer no estado desperto atemporal. Permanecer neste estado após a meditação chama-se "experiência pós-meditativa".
É um erro tentar concentrar-se no vazio e depois de meditar considerar intelectualmente tudo como uma miragem. Insight primordial é o estado que não é influenciado pela vegetação rasteira dos pensamentos, por assim dizer. É um erro permanecer prevenido contra a mente que divaga, bem como tentar aprisionar a mente na prática ascética de suprimir pensamentos.
Talvez algumas pessoas interpretem mal a palavra "atemporal" e suponham que se refere a todo e qualquer pensamento que esteja na mente no momento. É preciso entender "atemporal" como o insight primordial que já descrevemos.
O estado de ausência de meditação nasce no coração quando já não se distingue mais meditação de ausência de meditação e não se sente mais necessidade de mudar ou prolongar o estado de meditação. Há uma alegria que invade tudo e está isenta de todo tipo de dúvidas. Isso é muito diferente da mera alegria dos prazeres sensuais e da mera felicidade.
Quando falamos em ‘lucidez’ ou ‘claridade’ estamos nos referindo ao estado isento de indolência ou lentidão. Essa claridade é inseparável da energia pura e brilha desimpedida. É um erro igualar claridade com percepção de pensamentos e com as cores e formas dos fenômenos externos.
Quando os pensamentos estão ausentes, o meditar está imerso no espaço do chamado ‘não pensamento’, que é a ausência de pensamentos. Ausência de pensamentos não significa inconsciência, nem sono, nem recuo dos sentidos; significa simplesmente não se deixar influenciar pelo conflito. Os três sinais de meditação (claridade, alegria e ausência de pensamentos) podem ocorrer naturalmente quando se está meditando, mas se o meditador fizer algum esforço para criá-los, permanece na experiência cíclica do samsara.
Existem quatro visões errôneas do vazio. É um erro imaginar que o vazio seja meramente a ausência de conteúdos sem perceber o amplo espaço da atemporalidade. É um erro buscar a natureza de Buda em fontes externas sem perceber que a atemporalidade não conhece nenhum caminho e nenhum resultado. É um erro tentar introduzir algum remédio para os pensamentos sem perceber que os pensamentos são vazios por natureza e que sempre é possível libertar-se, como uma cobra se desenrolando. Também é um erro manter uma visão niilista dizendo que não há mais nada senão o vácuo, nenhuma causa e efeito do carma e nenhum meditador nem meditação, e ao mesmo tempo deixando de vivenciar o vazio além das concepções. Quem já obteve lampejos de percepção deve conhecer estes perigos e precisa conhecê-los detalhadamente. É fácil teorizar e falar com eloqüência a respeito do vazio, mas o meditador pode ainda não ser capaz de lidar com certas situações. Um texto do Maha-Ati diz, "A percepção temporária é como uma névoa que com certeza desaparecerá". Os meditadores que não estudam esses perigos jamais obtém coisa alguma ao fazer um retiro rigoroso, ou refrear a mente à força, ao fazer visualizações, ao recitar mantras ou praticar hatha ioga. Como está dito no Phagpa Düdpa Sutra, "O bodisatva que não conhece o verdadeiro significado da solidão, mesmo que medite durante muitos anos num vale remoto cheio de cobras venenosas, a mil quilômetros da habitação mais próxima, desenvolverá um orgulho arrogante".
Se o meditador é capaz de usar como caminho tudo que lhe acontece na vida, seja o que for, seu corpo passa a ser uma cabana de retiro. Ele não precisa aumentar o número de anos que passou meditando e não entra em pânico quando surgem pensamentos ‘chocantes’. Sua consciência continua firme como a de um velho observando uma criança brincar. Como diz um texto do Maha-Ati, "a realização absoluta é como o espaço imutável".
O iogue do Maha-Ati pode parecer uma pessoa comum, mas sempre mantém sua atenção no estado desperto atemporal. Não tem necessidade de livros porque encara os fenômenos aparentes e toda a existência como se fossem a mandala do guru. Para ele não existe especulação em relação aos estágios do caminho. Seus atos são espontâneos, por isso beneficiam todos os seres sencientes. Quando sai do corpo físico, sua consciência se identifica com o dharmakaya do mesmo modo que o ar dentro de um vaso se funde com o ambiente quando o vaso quebra.