Para a tradição antiga da Igreja, é pensar que podemos resolver todos os problemas dos homens pela economia: se todas as pessoas tiverem o que comer, não teremos problema e não haverá nem mesmo necessidade de se falar de Deus. Se todas as pessoas estiverem satisfeitas economicamente, a paz virá ao mundo e todas os seres humanos serão felizes. Essa é uma fala que, muitas vezes, nos seduz.
Dentro desse discurso há um fundo de verdade, pois não podemos falar de espiritualidade para alguém que tenha o estômago vazio. Trata-se de dar o pão, suprir as necessidades básicas, e todos nós estamos de acordo com isso.
O pão é necessário, mas não é suficiente. O homem também vive de poesia, de amizade. E, se o pão lhe for dado sem essa amizade, sem essa qualidade de presença, será como uma pedra em sua barriga.
Então, a primeira normose contra a qual Cristo começou a lutar foi o discurso que pensa que as satisfações materiais dos seres humanos podem resolver todos os seus problemas. "O homem não vive apenas de pão." Trata-se de dar-lhe o pão com esta qualidade de amizade e de humanidade. O ser humano não é apenas o Homo economicus.
A segunda tentação de Cristo é a do poder. "Eu lhe dou todas as nações e de todas elas você poderá fazer uma só, se você se inclinar diante de mim." Então, Jesus responde: "Ao Senhor teu Deus adorarás e só a ele prestarás culto." E, nessa passagem, vê-se a tentação do poder político, que é juntar todas as nações numa só; a uniformização, a redução de todas as diferenças dentro do mesmo molde; colocar todo o mundo numa espécie de grande exército, com regras muito precisas. E assim, novamente, dizer o que é certo e o que é errado. E aquele que é capaz de dirigir o mundo dessa maneira, será o mestre do mundo.
Jesus lembra que o único poder é o de Deus, que respeita as diferenças. Como falamos anteriormente, no canteiro não existem flores de uma única cor; cada uma tem suas particularidades, sua fragrância própria. Da mesma forma, ele faz florescer no mundo nações diferentes, etnias diferentes, tradições diferentes, religiões diferentes. A diferença não é a separação.
A diferença é a condição para haver união. Se não formos diferentes uns dos outros, não poderemos nos unir uns com os outros. Se todos pensamos a mesma coisa, é que já não pensamos mais! É justamente por termos pontos de vista diferentes que o nosso próprio pensamento pode ser estimulado.
Nem confusão, nem separação, mas união e diferenciação. Jesus renuncia a ser um Messias político para dominar os seres humanos. Assim, ele se conduz como o sal. Roberto Crema nos lembrou a afirmação de que nós somos o sal da terra. Vocês sabem que sal não é só aquilo que dá sabor aos alimentos, mas aquilo que releva o sabor de cada alimento. Caso contrário, é sinal de má cozinha ...
Quando se diz que vocês são o sal da terra, não significa que darão ao outro um gosto idêntico ao seu. A função do sal é dar a cada um o gosto que lhe é próprio, ressaltar a sua particularidade, a sua diferença.
Jesus renuncia ao poder econômico, ao poder político e renuncia também ao poder da magia. Em outra tentação, o que Satã lhe propõe é lançar-se do alto do templo e, por magia, chegar ao chão sem problemas e, assim, fascinar os que estão à sua volta. Novamente, Jesus recusa-se à fascinação, sempre buscando preservar a liberdade do ser humano.
Há alguma coisa em nós que gostaria de estar obrigado a crer, de não ter que escolher, de ser convencido. Nesse momento, então, Cristo nos faz lembrar que nada nem ninguém pode nos obrigar a crer. Podemos presenciar milagres, viver coisas extraordinárias, mas isso não nos dispensa desse ato livre que é a fé, a manifestação da liberdade dentro do ser humano...
Trecho do Capítulo 3 “Da Normose à Plenitude” – Livro A Normose – Jean-Yves Leloup